Jogadoras e conselheiras

“Futebol feminino é muito ruim, deveria acabar”.
“Ninguém impede mulheres no Conselho Deliberativo, são elas que não querem participar.”

Duas frases, dois ambientes tão distintos, em um mesmo universo, o futebol, ancorados em uma concepção profundamente, estruturalmente masculina. Há anos escuto essas frases, anos de vida associativa no Flamengo, anos tentando desconstruir esse discurso, anos de luta.

“Você soube se impor. Você conseguiu ser respeitada. Ta reclamando do que?”. Será que não entendem que eu não deveria ter que procurar me impor, eu não deveria lutar por respeito? Os homens do Conselho não precisam. Porque eu deveria brigar por um lugar ao sol, e eles não?

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Há cinco anos, quando entrei no Conselho, a primeira vez que peguei o microfone fui vaiada antes de falar. Há cinco anos, quando eu opinava sobre futebol, me mandavam lavar louça, assar bolo, me pediam a escalação do time de 2009, ou provas de um suposto conhecimento futebolístico impecável.

Foram anos mandando eles lerem livros, pegando o microfone em toda reunião só para eles se acostumarem, anos me posicionando incansavelmente, muitas vezes de forma reativa, apenas para marcar presença.

E, mesmo assim, os homens acham que são apenas 4% de mulheres no Conselho porque elas não querem participar… No mesmo Clube, em outro ambiente, também se luta há anos por equidade no futebol feminino.

Há cinco anos, as jogadoras tinham apenas dois uniformes por ano, não eram apresentadas no início da temporada, os jogos raramente divulgados e outros absurdos repetidamente denunciados.

Felizmente, o que era apenas uma obrigação imposta pela CBF e pela Conmebol, ter um time feminino, passou a ser enxergado no Flamengo como primordial no decorrer dos anos. Porque não se trata apenas de investimentos, mas de entender a importância de recuperar décadas perdidas, décadas de proibição para as mulheres de jogar bola.

A imposição para que os Clubes tivessem um time feminino foi decisivo. Mas foram anos de luta também para que as jogadoras fossem inseridas no ambiente. Enxergadas inquestionavelmente como profissionais do Futebol. E serão anos de luta para superar 40 anos de um Decreto monstruoso, eterminando que para as mulheres a prática de desportos eram “incompatíveis com as condições de sua natureza”.

Da mesma forma, faz se necessário um movimento, uma imposição, para que se tenham mais conselheiras e mais dirigentes mulheres no espaço político do Clube. O ambiente masculino e hostil precisa ser mais acolhedor sem dúvida. Mas não basta. Ter mulheres nos diversos conselhos e nas comissões não pode apenas depender da boa vontade dos dirigentes.

Precisa ter imposição, obrigação, cotas. Não podemos esperar de novo quase meio século para alcançar equidade, igualdade, liberdade.

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Já estou prevendo meus colegas indignados novamente. “Você é livre. Te tratamos igual. Que discurso é esse?”. Não, meus caros, não sou igual a vocês. Precisei me impor, lembram? E ainda preciso, todo dia, em toda reunião. Preciso falar constantemente, preciso lutar para não ser interrompida ou silenciada.

Estou cansada, esgotada. Enquanto vocês circulam e evoluem nos corredores da Gávea, com a maior facilidade, com a maior naturalidade, eu preciso constantemente provar meu comprometimento, minha competência, minha devoção.

Eu sei que não estarei mais aqui para ver um Conselho repleto de mulheres acolhidas e inseridas da mesma forma que os homens são. Mas peço que evoluem, reflitam, despertem. Ouçam os anseios da sociedade, fora dos muros da Gávea, que está muito mais inquieta e antenada com tudo que envolve o empoderamento das mulheres.

O ambiente hermético do Futebol precisa se abrir urgentemente. A dicotomia entre dois universos que convivem em uma mesma sociedade, acaba sendo nocivo. Já está sendo. Mas faz sentido. Afinal, mais da metade da sociedade brasileira é constituída por mulheres. Mesmo estruturalmente machista, ela não tem como ignorar o grito incessante de tantas.

Só que no universo do futebol, onde tudo é pensado e gerido por homens, onde existe apenas um gênero em praticamente todas as esferas, salvo exceções, as mudanças são extremamente vagarosas e tardias. Por isso a necessidade de se refletir sobre a especificidade e a complexidade desse ambiente. E elaborar formas de atuação em prol da inclusão e da valorização feminina.

Porque sendo jogadoras, sendo conselheiras, somos muito poucas ainda no universo do futebol. E dependemos frequentemente de decisões ponderadas por homens.

Que seja no campo, ou na política dos clubes, a luta é a mesma. O ambiente é o mesmo. O adversário é o mesmo. Batalhamos, sonhamos, desejamos. Olhem para a gente.

Hoje. Agora.
Não daqui a 40 anos.

Marion Konczyk Kaplan é conselheira do Clube de Regatas do Flamengo e presidente da Bancada Feminina do Conselho Deliberativo. Mestre em História pela Sorbonne Paris. Siga: @marionk72

Fonte: Mundo Rubronegro

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